No Brasil, normas infralegais determinam exceções ao uso, baseadas no entendimento de que componentes extraídos da Cannabis sativa L. (como o canabidiol – CBD – e o tetrahidrocanabidiol – THC) podem ser utilizados para terapias de pacientes com dores crônicas, câncer, epilepsia, fibromialgia e outras enfermidades. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), é aprovado o uso do canabidiol como forma de tratamento de epilepsias em criança e do adolescente cujo tratamento convencional não demonstra resultados, nos termos da Resolução CFM nº 2.113/2014; a mesma Resolução, entretanto, veda de forma expressa a prescrição da planta in natura de forma terapêutica e seus derivados além do canabidiol, conforme o artigo 4º.
A Resolução de 2014 do CFM perdeu sua validade em razão da edição da polêmica Resolução CFM nº 2.324 de 11 de outubro de 2022, que apresenta características restritivas, retrógradas e até mesmo inconstitucionais. A nova Resolução revoga a de 2014, aprovando o uso do canabidiol exclusivamente para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa, segundo a redação de seu artigo 1º (CFM, 2022). O parágrafo único do artigo 1º determina ao paciente ou seu representante legal a assinatura do “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” (TCLE), dando ciência sobre os riscos e benefícios potenciais do tratamento (CFM, 2022). Em outras palavras, a Resolução restringiu o uso do canabidiol à apenas duas situações, proibindo expressamente nos artigos seguintes sua prescrição médica em demais situações:
Art. 2º É vedado ao médico a prescrição da Cannabis in natura para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o canabidiol.
Parágrafo único. O grau de pureza do canabidiol e sua forma de apresentação devem seguir as determinações da Anvisa.
Art. 3º É vedado ao médico:
I – a prescrição de canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista nesta Resolução, salvo em estudos clínicos autorizados pelo Sistema CEP/CONEP.
II – ministrar palestras e cursos sobre uso do canabidiol e/ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico, bem como fazer divulgação publicitária (CFM, 2022).
O inciso II do artigo 3º da Resolução chama atenção por claramente lesionar os direitos constitucionais do acesso à informação, do livre exercício da profissão médica e da liberdade de expressão (artigo 5º, IV, XIII e XIV, CF/88). Além disso, conforme o disposto no Capítulo I do Código de Ética Médica, a autonomia médica é violada quando a Resolução limita a atividade do médico na escolha do melhor tratamento para seu paciente:
VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente;
VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho (BRASIL, 2009).
Na relação linear entre médico-paciente, cabe ao profissional, após detalhado diagnóstico, apresentar as opções mais adequadas para o tratamento com a avaliação de eventual risco e pretendido benefício e, ao paciente, no âmbito da sua autonomia da vontade, acatar ou não a proposta ofertada (QUINTINO, 2022). Os artigos 4º e 5º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos tratam do benefício e autonomia na relação entre o médico e o paciente:
Artigo 4 – Benefício e Dano Os benefícios diretos e indiretos a pacientes, sujeitos de pesquisa e outros indivíduos afetados devem ser maximizados e qualquer dano possível a tais indivíduos deve ser minimizado, quando se trate da aplicação e do avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e tecnologias associadas.
Artigo 5 – Autonomia e Responsabilidade Individual Deve ser respeitada a autonomia dos indivíduos para tomar decisões, quando possam ser responsáveis por essas decisões e respeitem a autonomia dos demais. Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indivíduos não capazes de exercer autonomia (UNESCO, 2005).
Observa-se que a decisão do CFM em publicar a Resolução 2.324/22 segue direção oposta em relação aos avanços na pauta do acesso à Cannabis medicinal proporcionados pela ANVISA entre os anos de 2019 e 2022. Devido à manifestação da comunidade médico-científica e da sociedade em geral contra seu caráter inconstitucional, a Resolução CFM nº 2.324/22 foi suspensa temporariamente após 13 dias de sua publicação, através da Resolução CFM nº 2.326/22, que abriu o tema para consulta pública, com início em 24 de outubro de 2022 e encerramento previsto para 23 de dezembro de 2022. A Resolução segue em estado de suspensão, contribuindo para a lacuna jurídica existente no Brasil sobre a regulamentação definitiva do uso medicinal dos compostos da Cannabis.
REFERÊNCIAS
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009 – Código de Ética Médica. Brasília, 2010. Disponível em: https://portal.cfm.org.br
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM 2.113/2014 – Aprova o uso compassivo do canabidiol par ao tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias aos tratamentos convencionais. 2014. Disponível em: https://portal.cfm.org.br
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM Nº 2.324, de 11 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.ingov.br
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM Nº 2.326, de 25 de outubro de 2022. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br
OLIVEIRA JÚNIOR, Eudes Quintino de. A limitação do canabidiol para uso medicinal. Migalhas – Leitura Legal, 23 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA (UNESCO). Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. 2005. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br