Em junho de 2022, o Superior Tribunal de Justiça, pela primeira vez, decidiu de forma favorável sobre o cultivo caseiro de Cannabis para fins medicinais. A decisão foi dada ao recurso em Habeas Corpus (HC) nº 147169 – SP (2021/0141522-6), interposto pelo paciente contra o acórdão proferido pela Décima Quinta Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, nos autos do HC nº 2220963- 16.2020.8.26.0000, denegou a ordem, não expedindo o salvo-conduto para que as autoridades policiais sejam impedidas de proceder à prisão ou à persecução penal pela produção artesanal de Cannabis Sativa. Os documentos juntados no processo indicam que o paciente utilizava o óleo de canabidiol – importado com autorização da ANVISA – para o tratamento de “diabetes mellitus insulino-dependente, insônia, ansiedade generalizada, estresse pós-traumático, transtorno misto ansioso e depressivo, transtorno depressivo recorrente e fobias sociais” – todas enfermidades devidamente diagnosticadas por suas médicas psiquiatras. Devido a sua condição financeira, interrompeu o tratamento e buscou judicialmente a alternativa da produção artesanal.[1] De forma inédita nas instâncias superiores, o Ministro Sebastião Reis Júnior, relator da decisão, deu provimento ao recurso, cedendo o salvo-conduto:
[…]. 2. A previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares. 3. A omissão legislativa em não regulamentar o plantio para fins medicinais não representa “mera opção do Poder Legislativo” (ou órgão estatal competente) em não regulamentar a matéria, que passa ao largo de consequências jurídicas. O Estado possui o dever de observar as prescrições constitucionais e legais, sendo exigível atuações concretas na sociedade. 4. O cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade. A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina. 5.
[1] Conforme os autos, mencionados na própria decisão, percebe-se o valor alto dos medicamentos importados pelo paciente (Hempflex e Provacan) na quantidade de 20 ampolas por ano: o Hempflex CBD foi orçado em R$ 389,00 (1.000 mg), R$ 989,00 (3.000 mg) e R$ 1.690,00 (6.000 mg). O Provacan CBD possui custos que variam entre R$ 224,34 e R$ 729,24, conforme a quantidade do princípio ativo.
Vislumbro flagrante ilegalidade na instauração de persecução penal de quem, possuindo prescrição médica devidamente circunstanciada, autorização de importação da ANVISA e expertise para produção, comprovada por certificado de curso ministrado por associação, cultiva cannabis sativa para extração de canabidiol para uso próprio. 6. Recurso em habeas corpus provido para conceder salvo-conduto a Guilherme Martins Panayotou, para impedir que qualquer órgão de persecução penal, como polícias civil, militar e federal, Ministério Público estadual ou Ministério Público Federal, turbe ou embarace o cultivo de 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, totalizando 60 por ano, para uso exclusivo próprio, enquanto durar o tratamento, nos termos de autorização médica, a ser atualizada anualmente, que integra a presente ordem, até a regulamentação do art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006. (STJ – RHC nº 147169 – SP. 15ª Câmara de Direito Criminal. Relator: Minº Sebastião Reis Júnior. Julgamento: 14/06/2022, publicação: 16/06/2022).
Da análise do voto do Ministro, destacam-se pontos relevantes no debate de acesso à Cannabis medicinal, começando pela atenção dada aos transtornos mentais do paciente, cuja obtenção de tratamento eficaz pelo óleo de canabidiol confronta os dispositivos da Lei de Drogas de 2006:
Primeiramente, em relação à comprovação do alegado, especificamente a necessidade médica, a autorização da ANVISA para importação e a expertise para extração do óleo para fins medicinais, entendo-os comprovados. Com efeito, consta, nos autos, prescrição médica atestando a necessidade do uso da cannabis para o tratamento de suas moléstias e para a manutenção da qualidade de vida (p. 28), relatório médico expondo o histórico (fls. 41/54), autorização da ANVISA para importação do medicamento (fl. 29/30), relatório psicológico (fl. 58) e certificado de participação em curso on-line de cannabis medicinal (fl. 72), entre outros documentos. (…). O ponto em discussão é a aparente contradição entre a norma penal incriminadora, arts. 33 a 39 da Lei nº 11.343/2006, e a omissão do estado brasileiro em regulamentar o plantio, a cultura e a colheita de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, especificamente a maconha e o canabidiol, possibilidade prevista no art. 2º, parágrafo único, da mesma lei. (…). (STJ – RHC nº 147169 – SP. 15ª Câmara de Direito Criminal. Relator: Minº Sebastião Reis Júnior. Julgamento: 14/06/2022, publicação: 16/06/2022).
Em seguida, respondendo a questão levantada com notável fundamentação na doutrina de Adorno e Horkmeimer (citados por Luís Carlos Valois[1]), o Ministro demonstra compreensão das mazelas sofridas por determinados grupos sociais em razão do embate legislativo, como o encarceramento desnecessário:
[2] VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 3. ed, 4. reimp. - Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2021, fl. 564/565.
[…]. Especificamente, as normas incriminadoras procuram tutelar a saúde pública da coletividade, risco esse que não se verifica nos casos em que a medicina prescreve as mesmas plantas psicotrópicas para fins de tratamento. Ora, a previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, entre outros, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares. (STJ – RHC nº 147169 – SP. 15ª Câmara de Direito Criminal. Relator: Minº Sebastião Reis Júnior. Julgamento: 14/06/2022, publicação: 16/06/2022).
Finalmente, invocando o acesso ao direito à saúde, os princípios de ultima ratio do direito penal e as normas da ANVISA, o Ministro dá provimento ao recurso, concedendo a expedição do salvo-conduto para o paciente cultivar a planta sob uso próprio e fins medicinais:
[…]. Ora, considerando que o delito de tráfico traz ínsito à sua descrição típica a busca pelo lucro, o cultivo da planta para fins medicinais encontra-se fora da tipicidade, pois realiza finalidade constitucional e legal, a saber, o direito à saúde […]. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de óleo para uso próprio medicinal, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina. (…). Essa omissão regulamentar alija, reitero, inúmeras pessoas, como o ora recorrente, que, com prescrição médica, fica impedido de obter o melhor tratamento e, assim, de ver atendido o direito à saúde, em razão dos custos de importação e da recalcitrância do poder público. (…). No caso, o custo da aquisição do canabidiol torna-se barreira intransponível e segregadora do acesso à saúde. A eventual concessão do presente salvo-conduto não se cuida propriamente de uma novidade em termos dogmáticos. […]. Ante o exposto, dou provimento ao recurso em habeas corpus para conceder salvo-conduto a Guilherme Martins Panayotou, para impedir que qualquer órgão de persecução penal, como polícias civil, militar e federal, Ministério Público estadual ou Ministério Público Federal, turbe ou embarace o cultivo de 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, totalizando 60 por ano, para uso exclusivo próprio, enquanto durar o tratamento, nos termos de autorização médica, a ser atualizada anualmente, que integra a presente ordem, até a regulamentação do art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006. (STJ – RHC nº 147169 – SP. 15ª Câmara de Direito Criminal. Relator: Minº Sebastião Reis Júnior. Julgamento: 14/06/2022, publicação: 16/06/2022). (Grifo do autor).
Essa decisão inovadora mostra que existe, dentro dos tribunais superiores, pensamentos e convicções que ultrapassam os estigmas construídos contra a maconha e reconhecem sua importância médica e econômica. Mesmo com omissão e inércia dos Poderes Executivo e Legislativo, observa-se que o Poder Judiciário cada vez mais permite e facilita o acesso à Cannabis para o uso medicinal. Entretanto, como não é uma matéria pacificada, as decisões contraditórias e falta de uniformidade nos parâmetros de controle prejudicam o desenvolvimento de uma regulamentação sólida que se atente ao direito à saúde em sua característica de fundamental a todo cidadão brasileiro, beneficiando as pesquisas, o desenvolvimento e a produção para o efetivo uso e acesso à Cannabis com fins medicinais e terapêuticos.
REFERÊNCIAS
KALLAS, Matheus Rodrigues. A normatividade regulamentar da Cannabis medicinal no Brasil e o acesso para o tratamento de ansiedade e depressão. Dissertação de Mestrado em Direito – FCHS – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. 2023. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/250203. Acesso em 14 out. 2023.