Em uma situação hipotética, se alguém te oferecesse os poderes de não ter mais medo, de não sentir mais dores e de ter uma vida em “alto astral”, você aceitaria? Aposto minhas fichas de que você não recusaria a oferta.
Infelizmente na vida real não existe uma fórmula mágica para acabar de uma vez por todas com o que conhecemos como medo e dor. Na verdade, o próprio conceito de medo e dor podem ser experenciados de formas diferentes, por diferentes pessoas.
Em uma pessoa saudável, a dor é uma sensação, uma expressão do corpo que aponta para algo de errado, algum desbalanço, alguma condição, alguma lesão, algum material ou corpo estranho que não deveria estar ali. O medo e a dor fazem parte da sobrevivência e da autopreservação. Características fixadas durante o processo evolutivo, que não estão apenas presentes em humanos, mas também em muitas outras espécies. O problema é quando o medo e a dor são estados crônicos, intermitentes. Condições fora da normalidade trazem prejuízos para o bem-estar e qualidade de vida das pessoas.
Apesar de não existir uma fórmula mágica, existe uma pessoa quase mágica que vive na Escócia (bom, não pelo sentido literal da palavra, até porque mutações não são eventos mágicos, mas sim bem reais).
Apresento Jo Cameron, uma senhora de 75 anos de idade, com uma mutação que impede com que sinta dores e medo, vivendo sempre em “alto astral”.
Jo Cameron viveu uma longa vida sem perceber que possuía uma condição rara. De fato, foi durante a senescência que descobriu que não sentia dores. Jo descobriu sua condição quando após uma cirurgia complexa no quadril e na mão, não se queixou de dores pós cirúrgicas, e se recusou a receber analgésicos. O profissional responsável pela cirurgia achou a situação muito curiosa e decidiu investigar o histórico de Jo. Foi quando descobriu que sua paciente já havia sofrido acidente antes, inclusive com fraturas, mas sem nunca ter utilizado qualquer analgésico. Antes disso, Jo Cameron nunca percebeu que era diferente, pois segundo ela, o fato de não sentir dor, de não saber o que é a dor sempre foi o normal para ela. A ausência da dor sempre significou a ausência de qualquer possível diferença em relação as outras pessoas.
Mas a ausência da dor foi sua própria criptonita quando ficou fisicamente incapacitada por conta da artrite que atingiu seu quadril. Por não sentir as dores da artrite, só foi perceber que estava debilitada quando sua capacidade de locomoção ficou comprometida. Ou quando ao cozinhar e ao passar roupa, não percebia que se queimava, vindo a tomar ciência do acontecido posteriormente ao surgimento das queimaduras nos braços.
Instigado pela ausência de medo e dor de Jo Cameron, o médico a convidou para participar de um estudo conduzido por pesquisadores da University College London (UCL). O objetivo era entender o porquê dessa curiosa condição e como as mutações aconteciam a nível molecular.
Os pesquisadores concluíram que Jo tem uma mutação fenotípica nos genes FAAH e FAAH-OUT. O FAAH-OUT é responsável por regular a expressão gênica do FAAH, reduzindo sua atividade enzimática. O FAAH, por sua vez, é responsável por codificar a enzima de degradação da anandamida. Isso significa que a anandamida permanece presente e ativa no corpo de Jo, sem que tenha a sua ação interrompida. Os resultados do estudo também demonstraram modificações em outros conjuntos de genes, incluindo genes responsáveis pela rápida cicatrização e regeneração óssea; genes que regulam o humor e genes que envolvidos na regulação dos níveis de opioides endógenos.
Mas o que é a anandamida e o que ela faz?
A anandamida é um neurotransmissor endógeno (nosso corpo produz, mais especificamente o cérebro). Ela é conhecida como “substância da felicidade” e tem o potencial de promover efeitos analgésicos, ansiolíticos e antidepressivos.
Se buscarmos em textos anteriores, aqui mesmo nesse blog, encontraremos uma breve explicação sobre o sistema endocanabinoide e como a anandamida age no nosso corpo. Curiosamente o THC, uma molécula fitocanabinoide proveniente da planta Cannabis sativa sp., possui características muito parecidas com a anandamida.
Com base na história da Jo Cameron, dos achados no estudo da University College London e no conhecimento sobre o sistema endocanabinoide, podemos levantar e testar hipóteses de que esse complexo sistema responsável por regular diversas funções do nosso corpo, e as moléculas que atuam nele (incluindo a anandamida e o THC), são importantes para o tratamento de condições neurológicas, incluindo dor crônica, ansiedade, depressão e condições neurodegenerativas.
Com a implementação do uso dos derivados da cannabis, juntamente com práticas integrativas, exercícios físicos, exercícios mentais, e alimentação saudável, pode ser possível manter uma vida mais equilibrada; com menos dores, menos estresse, medo, insegurança e mais qualidade de vida. Assim poderemos entender um pouco sobre como é viver com níveis elevados e mais constantes de anandamida, sem precisar de uma mutação ou fórmula mágica.
Referência:
Iversen L. Cannabis and the brain. Brain. 2003 Jun;126(Pt 6):1252-70. doi: 10.1093/brain/awg143. PMID: 12764049.
Mikaeili H, Habib AM, Yeung CW, Santana-Varela S, Luiz AP, Panteleeva K, Zuberi S, Athanasiou-Fragkouli A, Houlden H, Wood JN, Okorokov AL, Cox JJ. Molecular basis of FAAH-OUT-associated human pain insensitivity. Brain. 2023 May 24:awad098. doi: 10.1093/brain/awad098. Epub ahead of print. PMID: 37222214.